terça-feira, 20 de outubro de 2009

RITOS E COSTUMES DA CAVALARIA MEDIEVAL


Regina Schöpke

O período histórico que se convencionou chamar de Idade Média (entre os séculos V e XV de nossa era) foi profundamente marcado pelo espírito gregário. A existência de um espaço destinado ao indivíduo e à sua própria solidão era algo praticamente desconhecido neste mundo de relações tão estreitas. Um homem, quer fosse ele um representante das camadas mais humildes ou o mais ilustre dos cavaleiros, estava necessariamente fadado a uma convivência constante, quase permanente com o grupo ao qual pertencia. De fato, o engenho medieval suscitou incessantemente o nascimento de comunidades, grupos e associações, considerando como graves pecados o orgulho e a soberba - ou seja, tudo aquilo que pudesse colocar um indivíduo numa posição de destaque com relação ao seu grupo. Essa era, sem dúvida, uma sociedade que se fundamentava em "ordens" e em "corporações", levando seus integrantes a uma intensa e compulsória sociabilidade. Não havia espaço para a afirmação individual; existia-se em função de um grupo e pelo grupo. O indivíduo solitário aparecia assim como uma espécie de pária, do qual devia-se sempre desconfiar e ao qual não se conferia o mesmo estatuto dos outros homens (não é sem motivos que as legislações medievais não consideravam como grave delito abordar violentamente ou roubar transeuntes desacompanhados nas estradas). Mas, a que se deve este tipo de sentimento que fez sucumbir até mesmo o cavaleiro - cujo maior e natural desejo era o de sobressair-se diante dos demais integrantes de seu grupo? Como a instituição da cavalaria conseguiu unir o sonho gregário do cristianismo com o ideal guerreiro de uma afirmação pessoal?

Quanto à primeira pergunta, diríamos que dois foram os fatores que contribuíram decisivamente para a formação dos grupos ou das irmandades no Ocidente medieval: I - a instabilidade e o temor provocados pelas constantes invasões (especialmente pela ameaça dos mouros) e pela desintegração territorial que seguiu-se à decadência de Roma; II - a influência do espírito cristão, que apresentava-se com extraordinária força neste período. É evidente que as concepções religiosas fundamentavam - implícita ou explicitamente - quase todos os costumes daquela época, mas foi realmente uma necessidade concreta de auxílio e de proteção que levou os homens a unirem-se de modo tão estreito. Aqueles que podiam oferecer maiores vantagens podiam contar inclusive com uma proteção armada - o que significa dizer que um nobre suficientemente abastado poderia dispor de um séquito de cavaleiros que garantiam a sua segurança e, até mesmo, o tornavam capaz de impor-se aos menos poderosos. Em outras palavras, a cavalaria era - ao menos inicialmente - o braço armado dos senhores de terras, garantindo o seu poder. Mas, é preciso que se diga que o próprio cavaleiro foi, paulatinamente, conquistando seu direito ao título de nobreza; e será a partir disso que a sua imagem sofrerá modificações significativas. Tendo surgido como "polícia privada", temida por seu comportamento violento e por sua índole sanguinária, a cavalaria passará a ser - por volta dos séculos XII e XIII - representada como uma "ordem", uma "irmandade" bem organizada (cujas regras chegarão a ser tão rígidas quanto as de qualquer ordem monástica). É claro que, sendo herdeiros dos velhos guerreiros germânicos, os cavaleiros (mesmo cristianizados) opunham alguma resistência à idéia de se tornarem simples membros de um grupo. Mesmo a "ética dos iguais" (ética guerreira, por excelência) só dizia respeito aos componentes de um mesmo grupo e não intervinha na relação entre grupos rivais. No geral, os cavaleiros estavam sempre medindo as suas forças em justas e embates pessoais. Até porque o termo "cavalaria" abarcava um contingente humano tão díspar e tão fragmentado quanto o próprio território europeu. Mas, com uma certa relativização, podemos dizer que a cavalaria, sobretudo depois do século XII, converteu-se realmente em uma instituição de fato - e com regras de ingresso bem definidas.

Quanto à segunda questão, nada nos faz crer que o cavaleiro tenha conseguido unir de modo tão indissociável ideais tão contrários como o de viver sob a égide de um grupo soberano e o de afirmar-se como indivíduo diante do mundo. Mas, a despeito destas contradições tão evidentes, o cavaleiro firmou-se no cenário medieval (sobretudo, no período feudal) como legítimo representante dos ideais gregários. Afinal, como dissemos, a sobrevivência individual estava atrelada e mesmo determinada pela sobrevivência do grupo. Mas, quem era, afinal, o cavaleiro da Idade Média? Que tipo de homem estava apto a pleitear o seu ingresso neste universo armado? Para começar, existe uma diferença bastante profunda entre os antigos guerreiros germânicos e os cavaleiros medievais: entre os primeiros, todo homem era, em princípio, um guerreiro; já entre os medievais, somente tornavam-se cavaleiros os indivíduos que pertencessem à aristocracia. Sabe-se de casos isolados em que o cavaleiro provinha de segmentos mais humildes da sociedade, mas, no geral, eles eram oriundos de uma média aristocracia. De qualquer maneira, depois do século XIII, apenas os nobres de nascimento podiam realmente ser sagrados cavaleiros.

Sobre a introdução do aristocrata no mundo das armas, ela dava-se muito cedo. Ainda na infância, por volta dos sete anos, o menino abandonava a convivência feminina e a casa paterna para tornar-se protegido de algum senhor mais poderoso - que deveria proporcionar-lhe o ensino do manejo das armas e das técnicas militares. Enquanto aprendia seu ofício e aguardava o momento de tornar-se cavaleiro, o jovem já fazia parte de um grupo, juntamente com seus muitos colegas. Uma vez sagrado cavaleiro, ele encontrava-se inexoravelmente ligado por fortes laços de fraternidade aos seus companheiros de armas, constituindo com eles uma espécie de "família artificial" - à qual deveria estar ligado até o fim de sua vida guerreira.

Mas, o jovem aristocrata só se tornava, de fato, um legítimo homem de armas no momento da investidura - ritual através do qual ele era sagrado cavaleiro, recebendo seu armamento. O rito de iniciação deste aspirante à vida guerreira (ritual proveniente da cultura germânica) era presidido por um cavaleiro bastante experiente (o padrinho do novato), que deveria aplicar-lhe uma bofetada - como marca sensível de sua passagem da infância para a juventude (originariamente pagão, este ritual terminou por ser cristianizado, passando a identificar-se com o próprio batismo). Na verdade, o termo utilizado para designar este jovem, mal saído da adolescência, era "juvenis" ("juventus", no plural). Assim eram chamados os "cavaleiros andantes" das narrativas medievais - estes jovens solteiros que perambulavam pelo mundo em busca de aventuras heróicas e de torneios onde pudessem demonstrar o seu valor. Mas, estes "moços" nem sempre eram tão jovens quanto se poderia pensar, já que este termo era utilizado para denominar todos os cavaleiros que ainda não estavam estabelecidos, ou seja, casados e com terras. Uma longa mocidade podia ser o resultado desta vida nômade e desafiadora. Mas, como todos os demais, o cavaleiro também não ousava correr o mundo solitariamente. Ao contrário disso, ele vagava junto a sua mesnada, em busca de torneios, glórias e riquezas.

Seguindo em torno de algum jovem e rico senhor, os cavaleiros passavam quase todo o seu tempo correndo de cidade em cidade, à procura de competições onde pudessem conquistar o máximo possível de fama e de prêmios valiosos. Os tipos básicos de competição entre cavaleiros eram a justa e o torneio. A justa era uma competição travada entre dois cavaleiros, enquanto que o torneio consistia num enfrentamento que se dava entre grupos. É claro que estas atividades sangrentas não agradavam à Igreja - que resolveu intervir de modo mais direto contra este foco de violência inútil. Decididamente, a Igreja e a cavalaria não partilhavam dos mesmos ideais e pontos de vista. Mas, tal incompatibilidade não perdurará por toda a Idade Média. Isto porque, quanto mais a cavalaria se firmava como "ordem" no cenário medieval, mais as suas atividades eram deslocadas do terreno da simples vaidade pessoal para o âmbito do serviço à glória de Deus. As Cruzadas (expedições organizadas pela Igreja ou pela nobreza, com a finalidade de lutar pela libertação do Santo Sepulcro e da Terra Santa, sob domínio muçulmano) contribuíram para tal mudança de atitude ou, pelo menos, ajudaram a produzir a imagem do "cavaleiro de Cristo" - do cavaleiro desinteressado, que buscava apenas lutar e dar sua vida pelos ideais da cristandade. Do mito à realidade, o sonho da cavalaria cristã não impediu a subsistência dos hábitos guerreiros mais arraigados. A própria situação dos jovens aristocratas não contribuía muito para modificar este quadro, já que a primogenitura fazia com que um enorme contingente deles se visse quase totalmente alijado da herança familiar. Para esses, não restava outra opção a não ser tentar "fazer nome e fortuna", através dos torneios e das façanhas guerreiras - que poderiam granjear-lhes um bom casamento (já que os dotes costumavam ser vultosos).

As façanhas destes cavaleiros deram origem a um gênero literário específico, o romance de cavalaria, nos quais eram narrados os feitos heróicos deste grupo de armas para o público das cortes medievais (no qual encontravam-se grande número destes mesmos cavaleiros). Apesar de seus evidentes exageros, esses romances contribuíram também para a introdução dos valores cristãos na esfera cavaleiresca. Porém, o papel mais importante desempenhado por essa literatura foi o de constituir e difundir uma "imagem" idealizada do cavaleiro medieval - que é basicamente aquela que até hoje sobrevive no imaginário ocidental. Essa imagem, longe de um valor puramente ficcional, exerceu uma poderosa influência sobre o espírito dos cavaleiros, criando modelos de comportamento que eles próprios esforçavam-se para imitar.

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DISPENSATA


A propósito do artigo "A palavra como agente do preconceito e do fanatismo", de Regina Schöpke

Mauro Baladi

Desde que os homens aprenderam a falar, apresentou-se concretamente no mundo o problema da equivocidade. Afinal, as palavras dizem as coisas mas não “são” as coisas. No entanto, pela própria natureza do nosso conhecimento, nosso cérebro e nossa comunicação estão continuamente lidando com conceitos, ou seja, com palavras, enquanto os seres concretos permanecem – e permanecerão sempre – realidades inalcançáveis. Assim, a palavra pode adquirir muitas vezes um valor que a torna mais verdadeira do que aquilo que ela descreve. Outras vezes, a palavra adquire vida própria e cria uma pretensa realidade, tal como alguns grandes homens da Antiguidade substituíam seu começo de vida obscuro por alguma narrativa mitológica que os transformasse de bastardos em “filhos dos deuses”. Não deixa de ser notável o fato de que justamente os conceitos que têm menos referentes concretos sejam aqueles que mais acendam as paixões humanas. Muito sangue verdadeiro tem sido derramado, ao longo da história, por vãs abstrações como “Deus”, “nação” ou “raça”, e o ser humano tem provado sobejamente que é a criatura mais fácil de iludir. Todo sistema com ambições totalitárias – seja ele político ou religioso – tem necessidade de produzir, para se legitimar e garantir seu poder, um discurso e uma mitologia, palavras de ordem e heróis, slogans publicitários e logomarcas. Não há, no fundo, grande diferença entre um messias, um ditador e um tubo de creme dental, já que os três só têm sua razão de ser quando encontram um público consumidor.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Nietzsche: o homem sem medo


O Estado de São Paulo, Domingo, 20 de Julho de 2008

Em Ecce Homo, pensador alemão propõe a verdade como o encontro com o mundo e com o outro

Regina Schöpke

Para Nietzsche, não há nada que o homem conheça menos do que a si próprio. Nesse sentido, o "conhece-te a ti mesmo" de Sócrates soa como uma ironia, mas também como um desafio. É verdade que os séculos 19 e 20 fizeram ruir grandes certezas e lançaram ainda mais dúvidas sobre o nosso conhecimento do mundo e de nós mesmos, mas parece que Nietzsche resume perfeitamente tudo isso quando diz que: "Até agora proibiu-se sempre, em princípio, somente a verdade."

De fato, essa não deixa de ser uma estranha afirmação para quem diz tantas vezes que a "história da verdade" é, no fundo, a história de uma mentira. Mas há que se entender bem o que Nietzsche quer dizer. Essa é, aliás, uma preocupação que o próprio filósofo alemão expõe no prólogo de seu instigante Ecce Homo (ou Como Alguém Se Torna Aquilo Que É): "Ouçam-me. Pois sou tal e tal. Sobretudo, não me confundam." É assim que Nietzsche inicia essa verdadeira introdução (mas também conclusão) a si mesmo e a sua obra. Ele não quer que o vejam como um monstro moral, mas prefere o papel de sátiro ao de santo.

Chegando às livrarias em uma bela edição de bolso, Ecce Homo apresenta, logo de início, essa simples (ou nem tanto) questão da verdade: o homem refugia-se nos ideais que criou para si. Tudo no homem é criação, produção, mentira, a começar pela maneira como ele próprio se vê. Solipsismo levado ao extremo, mundo próprio: isso é a cultura. A fuga para os ideais não é cegueira, diz Nietzsche, mas covardia, impossibilidade de aceitar a vida como ela é. A verdade parece, nesse caso, estar do lado do mundo ou, pelo menos, diz respeito a algo que o homem insiste em não ver. E esse algo é a própria existência: o seu lado mais sombrio, mais problemático, mais doloroso. No fundo, os homens querem apenas as alegrias, mas, ao negar uma parte da vida, eles acabam negando a existência inteira.

Sem dúvida, Nietzsche tem horror do conceito de verdade como essa coisa demasiado lógica, pura, humana, que não ofende ninguém, que não põe em risco o castelo de areia que construímos para nos abrigar do mundo. Verdade apaziguadora, exatamente porque não é verdade. Toda verdade é um encontro com o mundo, com o outro, com o "fora" e, assim, ela é no mínimo desconcertante, vertiginosa, algo que põe o pensamento em movimento. Sem dúvida, há algo de kantiano e, mais ainda, de schopenhaueriano em certas observações de Nietzsche. Em muitos momentos, o mundo aparece realmente como um ilustre desconhecido, algo que se vislumbra apenas por uma lente embaçada: a coisa em si, inacessível. Mas Nietzsche não se mantém muito tempo nesse percurso. Seus olhos estão abertos demais para ver que, embora o mundo seja "a minha representação", existe indubitavelmente um abismo entre os ideais humanos (os sonhos de grandeza da nossa espécie, nossas verdades bem estabelecidas) e o mundo do "aqui e agora", mundo silencioso e ruidoso ao mesmo tempo; mundo fugidio, que nunca se mostra com facilidade, mas que está sempre aqui e ali, e em toda parte, para quem quiser e puder ver.

Sim... dentre tantas coisas que Nietzsche trata em seu Ecce Homo, chamamos a atenção para o que ele diz acerca da potência do espírito para suportar a verdade: "O quanto de verdade suporta um espírito." Isso é ser um filósofo! Refugiar-se nos sonhos, nas quimeras, nos ideais, nas crenças mais absurdas, acreditar mais no invisível do que nos sentidos, na carne, na vida: eis a verdadeira forma do niilismo. Em geral, os que acusam Nietzsche de ser niilista são exatamente aqueles que insistem em manter seus olhos voltados para o "nada", enquanto os fecham para o esplendor da vida. Eles se negam a viver a grande aventura da existência. E depois o que resta é apenas chorar pelo tempo perdido. A vida é dura, é claro, mas também é exuberante para quem sabe viver, para quem não foge dela. Eis o segredo dos fortes: ser aliado da vida.

É por isso que, nesse breve livro (mas de uma beleza fulgurante e de uma força monumental), Nietzsche se volta também para questões básicas como a alimentação, a escolha do melhor lugar para se viver, etc., porque sabe bem - e aprendeu a duras penas - que esses são problemas mais importantes e mais essenciais para a vida do que a reflexão vazia sobre o além. Como diz Nietzsche, é preciso uma nova saúde para uma nova filosofia: uma filosofia que afirme o "sentido da terra", a existência em todas as suas facetas, sem medo, com paixão e potência.

Em Ecce Homo, nosso encontro é com o próprio Nietzsche. Ali, ele põe à prova o "conhece-te a ti mesmo". Nietzsche se mostra por inteiro, fala de seus bons e maus encontros, das influências sobre o seu espírito, da sua vida, mas também das suas obras, do que cada uma delas representou. A idéia grandiosa do eterno retorno, o seu sonoro e, ao mesmo tempo, benévolo "Sim" à vida, no que ela tem de melhor e de pior... E Nietzsche conheceu o "pior": a dor, a doença, o sofrimento. Sua grandeza, no entanto, foi sofrer sem jamais "endurecer", sem perder a percepção do quanto é belo existir e estar plenamente vivo.

Sobre esse ponto, Nietzsche dá lições magistrais. Ele conheceu a doença e a saúde, quase em igual proporção. Soube ver o mundo e as coisas pela ótica do doente e também com os olhos transbordantes de saúde. Mas nem quando esteve doente, ele deixou-se minar pelo ressentimento ("porque estar doente é uma forma de ressentimento"). Ele jamais odiou a vida por isso. A sua genialidade, que - no fundo - justifica plenamente o seu orgulho (ele não tem pudor em dar aos capítulos de seu livro títulos como: Porque escrevo tão bons livros, Porque sou tão sábio), é a sua força brutal para viver e para procurar sempre os bons remédios para si mesmo. Como ele próprio diz, "para curar-se, é preciso, no fundo, ser são". Enfim, isso é o Ecce Homo, isso é Nietzsche em seu estado mais puro. É preciso coragem para encará-lo de frente. Freud, por exemplo, confessou que nunca teve coragem de ler Nietzsche. E a pergunta é: quem tem?

terça-feira, 13 de outubro de 2009

O carnaval em que os miseráveis se sublevaram contra as injustiças


O GLOBO, sábado, 7 de Dezembro de 2002

O CARNAVAL DE ROMANS, DE EMMANUEL LE ROY LADURIE. TRADUÇÃO: MARIA LÚCIA MACHADO. COMPANHIA DAS LETRAS, 433 PÁGINAS

Mauro Baladi

Cada vez mais, nossa idéia de carnaval é a de um longo feriado prolongado, ocasião para dias de descanso ou para assistir, de preferência pela TV, a um monótono desfile de escolas de samba. Porém, o carnaval já foi uma festa religiosa e, mais que isso, uma época para abolir (ou limitar) as pressões morais e sociais. Em sua natureza, o carnaval é justamente este período caótico que hoje faz com que os burgueses precavidos busquem refúgio seguro e aprazível.

Porém, é por ser uma época de "relaxamento" dos costumes, de euforia insensata e catarse, que esta festa, fundamentalmente pagã, pode propiciar tragédias. É o caso do célebre Carnaval de Romans, magnificamente descrito no livro homônimo do historiador francês Emmanuel Le Roy Ladurie. Um dos grandes da historiografia contemporânea, Ladurie dedica-se ao estudo da formação do Estado francês (nos séculos XI e XVII), usando os métodos da chamada Nova História. Longe de privilegiar personalidades marcantes ou acontecimentos isolados, ele busca abarcar em profundidade os diversos aspectos de um campo social, delimitado geográfica e cronologicamente.

Neste livro, o personagem principal é a pequena cidade de Romans (na antiga região do Delfinado, no sul da França), entre 1579 e 1580. Com pouco mais de 7.500 habitantes, Romans resume os grandes conflitos de sua época: as crescentes oposições entre nobres e burgueses, elite e povo, cidade e campo, católicos e protestantes. Não estamos mais presos na impermeável pirâmide social do feudalismo e, entre a nobreza e os camponeses, impõe-se uma dinâmica classe de comerciantes e pequenos industriais (como de couro e tecidos), que reivindicam sua parte nas honras e no poder.

Mas a nova estrutura social não parece afetar a nobreza, que continua a desfrutar dos privilégios "sagrados" de sua condição. A mudança, quando ocorre, demonstra apenas a venalidade do Estado Moderno, com o enobrecimento de burgueses. Dentre os privilégios, o mais notável é a isenção fiscal, que premiava boa parte da elite romanesa. Os pesados impostos e tributos eventuais (especialmente para o custeio de guerras) recaíam sobre os que tinham a triste necessidade de trabalhar para o sustento.

Devido à insustentável carga tributária que os oprimia e aos abusos do poder, camponeses e artesãos de Romans empreenderam uma luta contra os privilégios das elites, símbolo da injustiça social. Mesmo sem caráter especificamente revolucionário, os acontecimentos de Romans prenunciam a insatisfação que resultaria, dois séculos depois, na Revolução Francesa.

Vendo a inutilidade de suas reivindicações pacíficas (já que a Justiça era um acessório da nobreza), partiu-se para medidas mais concretas, que resultaram na ocupação de Romans no carnaval de 1580, comandada pelo fabricante de tecidos Jean Serve (Paumier). Mas a reação dos poderosos, ameaçados pela fúria da plebe, não se faz esperar: a frágil coalizão entre camponeses miseráveis e "proletários" citadinos não resistiu ao primeiro confronto sangrento (mais de 20 mortos, entre eles Paumier).

Devolvida à normalidade administrativa, Romans é "purificada" pelo juiz Guérin, que se encarrega de punir com a lei quem ousou desafiar seu poder. No campo, a luta é mais consistente e a repressão, mais violenta, com o massacre dos revoltosos. É uma revolta popular que contém todos os elementos para conhecermos a fundo o funcionamento da sociedade francesa do século XVI. Porém, ainda mais importante é constatar que questões levantadas há 400 anos ainda atormentam a realidade social (as injustiças fiscais, a luta pela terra, abusos e violência dos poderosos...). O que nos traz à lembrança a máxima, repetida por Ladurie, de que "não há nada de novo sob o sol".

O Estado de São Paulo, 7 de outubro de 2009

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Na defesa dos animais, a luta humana contra todas as tiranias


O Estado de São Paulo, Domingo, 23 abril de 2006

Em Jaulas Vazias, o filósofo americano Tom Regan fala do sofrimento dos bichos e discute a postura do homem no mundo

Regina Schöpke

Quando Voltaire chamou de estúpida a idéia de que os animais são seres destituídos de sentimentos e de emoções, era a Descartes (e a sua ignóbil noção de "máquinas sem alma") que ele pretendia atingir. Afinal, mostrar os animais como engrenagens ocas, vazias, que nada sentem (nem dor, nem amor, nem alegria, nem coisa alguma) serviu de justificativa para toda a forma de exploração e de abusos cometidos contra eles. É claro que pode soar estranho que algumas pessoas dêem tanta atenção ao bem-estar dos animais quando os próprios homens não se entendem, se matam e se escravizam. Aliás, costuma-se argumentar que se até hoje os seres humanos não conseguem respeitar nem a sua própria espécie, por que respeitariam as outras?

Argumento irrefutável, sem dúvida. Mas, também é, com toda certeza, um argumento de má-fé, já que sua função é paralisar uma discussão que vai muito além da relação dos homens com os animais. Tal discussão termina (ou começa) no interior do próprio homem e de sua tirânica relação com a vida. Sim... Quem pode negar que a história humana tem sido marcada mais pela tirania do que pelo bom senso de nossa aclamada razão? Ódio, intolerância, preconceito, racismo, ambição, guerras sem fim... O homem parece mesmo o tal "rei das bestas", como disse ironicamente o grande gênio da Renascença, Leonardo da Vinci, aludindo ao fato de que ele é, sem dúvida, a maior de todas elas.

Parece que a vida não tem mesmo muito valor para o homem. Eis porque Nietzsche sempre falou que era preciso recuperar "o sentido da terra", como um despertar da existência. O prazer de fazer valer cada instante que passamos aqui... os pés enterrados no solo, a brisa suave acariciando nosso rosto... Viver é o supremo bem de todo ser! E ser é estar no mundo! Nesse ponto, sob o aspecto da vida, todo ser é ser, homem ou animal, sem distinção. Ser não é pensar, nem é ter raciocínios mais elaborados. Não é mais ser quem pode fazer a pergunta sobre o próprio ser (que suprema tolice!). Ser é viver, é estar presente, é afetar e ser afetado, é fazer encontros, é estar no tempo do mundo. Daí porque nenhuma tirania é justificada, absolutamente nenhuma. É uma questão simples de poder, de indiferença e de desrespeito. Quem não se opõe a ela, portanto, está negando a si mesmo o direito de ser livre e de viver.

Está na hora, portanto, de olharmos de frente para o que fazemos. Sairmos de nosso solipsismo pueril. Das duas uma: ou não existem direitos naturais à vida e à liberdade, como o homem tanto acredita e defende para si, ou tais direitos existem para todos que partilham conosco dessa exuberante existência. Eis o ponto onde deve começar a verdadeira discussão sobre os direitos dos animais! Eis o grande desafio que precisamos encarar: o da tirania (seja com a nossa espécie, seja com as outras)! Não podemos mais ficar na posição de ressentidos, nos fazendo de vítimas das circunstâncias. Está na hora de entendermos até que ponto também somos coniventes e cúmplices dessa tirania, seja por ignorância, seja por total desprezo à vida alheia.

É sobre essa difícil e, em geral, menosprezada questão dos direitos dos animais que trata o livro Jaulas Vazias, do filósofo norte-americano Tom Regan (Editora Lugano, 294 págs., R$ 38). Regan, que é conhecido mundialmente pela sua luta em prol do que ele chama de uma "consciência animal", ou seja, desse despertar do homem para a sua própria condição de membro ou parte da natureza, tornou-se uma espécie de porta-voz daqueles que não podem falar e que, em função disso, tornaram-se escravos das nossas necessidades e comodidades. Um clamor pela vida, mas também um apelo para o enfrentamento de nós mesmos e de nossa postura no mundo. Eis o que é esse livro: uma exposição clara da situação degradante em que vivem os animais.

Sim... é, de fato, degradante. O homem fez da Terra uma enorme gaiola, onde todos os animais vivem escravizados, privados de sua liberdade de ir e vir, de constituir família, de compartilhar a vida com outros seres de sua espécie, enfim, de serem senhores de suas próprias vidas. Eis, aliás, um conceito que Regan desenvolve na obra: o de "sujeitos-de-uma-vida", como ele chama todos os seres vivos (independente de pensarem com conceitos gerais e abstratos ou de viverem a partir de suas sensações mais imediatas). Aliás, é para tal fato que Regan deseja chamar a atenção: se temos o direito à liberdade, eles também têm. Negar isso é, como já dissemos, aceitar como natural a nossa própria escravidão.

É certo que muitos poderão dizer que isso é uma utopia ou uma ficção. Mas, que idéia não é uma ficção, uma criação humana? A questão, no entanto, é saber quais ficções servem à vida e quais estão a serviço do niilismo e da destruição. E, principalmente, saber de que lado o homem deseja ficar. Regan deseja ficar do lado da liberdade e do respeito a toda forma de vida. Afinal, já está mais do que na hora de pararmos de usar o discurso da superioridade para justificar nossos atos cruéis e nosso desprezo pela existência.

Como mostra o autor, não nos contentamos apenas em dispor indiscriminadamente de todas as vidas para nos alimentar; nós enjaulamos todos os animais. Nem mesmo os animais que dizemos estimar, os cães e os gatos, escapam de um tratamento indigno. Também eles são mercadorias que colocamos à venda e que, muitas vezes, tratamos como bibelôs e brinquedinhos para nossa diversão e proteção. Daí porque basta que envelheçam para serem substituídos como uma roupa velha. Não satisfeitos, ainda usamos os animais como cobaias em laboratórios, não ligando a mínima para o sofrimento que lhes infligimos (afinal, é para o "nosso" progresso). Nos divertimos nas touradas, nos circos, zoológicos e caçadas. E chegamos a tal ponto de insensibilidade que usamos a pele dos animais apenas por um luxo, uma manifestação vulgar de status e riqueza (pele, essa, que é retirada enquanto eles ainda estão vivos e se debatendo de dor). Humano, demasiado humano... Nosso desrespeito pela vida e pelo sofrimento dos animais é tão ilimitado e irracional quanto a crença de que temos o privilégio sagrado de usar e de abusar da natureza.

É claro que, como Nietzsche, reconhecemos que a vida é luta. Mas, não aceitamos a idéia de que abusar de tudo e de todos seja lutar. Trata-se de um jogo sujo, de uma trapaça, que não depõe em nada a favor de nossa inteligência e superioridade. Aprisionar os pássaros e furar seus olhos para que eles cantem melhor não é, certamente, uma questão de sobrevivência. Assim como amontoar cães e gatos em gaiolas, como fazem certos restaurantes da China, para que eles sejam escolhidos pelos fregueses e mortos na hora, só se explica por uma brutalização ainda maior do homem, já que nem os animais que se tornaram nossos mais fiéis companheiros são poupados. Tudo isso é apresentado no livro de Regan, que não poupa detalhes (embora sem qualquer sensacionalismo) de como vivem os animais nas granjas, de como são os matadouros, de como milhões deles são mortos ou mutilados diariamente pelas indústrias alimentícias, de cosméticos, etc. O intuito do autor é, de fato, tocar a "alma" dos relutantes, daqueles que ainda não tomaram consciência clara dessa situação. É assim que, numa linguagem simples e direta, Regan vai fazendo reflexões teóricas profundas sobre nós mesmos, nossos hábitos e nossas práticas.

Da Vinci é, com razão, muitas vezes citado no livro. Afinal, ele, que desde criança tornou-se vegetariano por não suportar as atrocidades que se cometiam, dizia que o homem transformou seu estômago num túmulo para todos os animais. Da Vinci nem colocava a questão se somos ou não carnívoros (tudo em nossa compleição indica que não somos); ele apenas chamava a atenção para a brutalidade de nossas ações, pois nem mesmo isso justificaria a escravidão dos animais.

Dizem que da Vinci também teria dito que um dia se consideraria um crime, um assassinato, matar um animal. Esse dia ainda parece distante, mas hoje já existem menos dúvidas sobre os seus sentimentos e emoções. Aliás, Darwin estudou tais emoções e, mais do que isso, ele foi o primeiro cientista a desferir um golpe profundo em nossa arrogância ao mostrar que nossa espécie evoluiu de outras inferiores e que somos apenas animais, ainda que muito inteligentes. Nesse caso, falar de "consciência animal" não é falar apenas de cães, gatos, porcos, bois ou patos, mas de todos nós, humanos ou não. Regan está certo. Jaulas vazias, sim! Só isso poderia libertar o homem de sua própria jaula e escravidão. Eis um sonoro grito da vida... Eis o sonoro grito da natureza!

Regina Schöpke: livro do tempo Matéria em Movimento investiga filosofia na dança das horas


Estado de São Paulo, Quinta, 07 de Outubro de 2009

Francisco Quinteiro Pires

O homem pode fugir de tudo, até de si mesmo, menos do tempo. Segundo a filósofa Regina Schöpke, a noção do tempo tem a ver com a duração das coisas e não com uma percepção abstrata e isolada. "Para mim, o enigma se resolve com a compreensão da matéria, já que afirmo que o tempo não existe em si mesmo, dissociado dela", diz. O senso comum parece dizer que, junto com a alegria, algo bem concreto é diariamente roubado dos indivíduos: a vida. Cronos, deus do tempo na mitologia grega, gerava e devorava os próprios filhos. Querendo ou não, lembra a autora, o tempo da existência é trágico. Mas é ele também que permite saborear os prazeres deste mundo transitório. Regina afirma que é preciso religar o homem à vida, dentro da qual se enxerga como um expatriado.Em Matéria em Movimento (Martins Editora, 472 págs., 49,80), que será lançado na livraria Martins Fontes, às 18h30 de hoje, ela debate a compreensão histórica do tempo, um dos objetos mais fugidios da filosofia. Ela cita filósofos como Platão, Santo Agostinho, Espinosa, Kant e Bergson. Colaboradora do caderno Cultura, do Estado, Regina discute, sobretudo, as obras de Deleuze e Nietzsche, que trabalharam o conceito de eterno retorno.Ela pretende mostrar como, mesmo sendo tão essencial para a estrutura psicológica e a organização social dos indivíduos, o tempo pode ser pensado de modo diverso. Regina propõe a percepção do tempo como "matéria em movimento", conceito que é o eixo do seu livro. Tal afirmação conduz à conclusão de que a ideia de estabilidade é apenas uma ilusão, frágil disfarce condenado a cair por terra no primeiro contato com o mundo, "essa enorme força criadora e recriadora de si mesma".

domingo, 4 de outubro de 2009

Como os mitilenianos puniram a defecção de seus aliados

Os mitilenianos, tornando-se os senhores do mar, puniram a defecção de seus aliados proibindo que eles intruíssem suas crianças nas letras e na música. Eles acreditavam não poder castigá-los mais rigorosamente do que condenando-os a viver na ignorância.
Eliano, Histórias diversas (VII, 15). São Paulo: Martins, 2009.

PHILIPPE ARIÈS E O NASCIMENTO DA MORTE


JORNAL DO BRASIL, SÁBADO, 17 de maio de 2003

Mauro Baladi

História da Morte no Ocidente, de Philippe Ariès. Tradução: Priscila Vianna de Siqueira, Ediouro.

Somos muitas vezes tomados por aquilo que poderíamos chamar de "ilusão retrospectiva", pela crença de que nossos atos, valores e anseios - assim como as idéias que os motivam e legitimam - estiveram e estarão sempre presentes no homem e em suas sociedades. Temos a confortadora impressão de que trabalhamos, nos casamos e nos relacionamos com nossos amigos ou com o dinheiro como fizeram nossos pais e avós, descontadas as comodidades e exigências do mundo atual. Assim, consideramos que as mudanças - quando se tornam por demais perceptíveis - são simples acidentes passageiros e reversíveis, que se dão em objetos atemporais (a família, o Estado, o amor...), essencialmente perfeitos e isentos de corrupção.

Uma das características desta ilusão é nos convencer de que as palavras - tais como "honra", "moral" ou "amizade" - trazem sempre consigo um sentido absoluto que nós, individualmente ou em sociedade, somos mais ou menos capazes de compreender e traduzir para nossa existência. Tal como Sócrates, nos diálogos platônicos, achamos que os exemplos concretos devem, necessariamente, reproduzir - com maior ou menor fidelidade - modelos que nos servem como parâmetros de avaliação (o que autoriza os moralistas a dizerem, por exemplo, que a humanidade atual está degenerada ou decadente).

Porém, uma das mais instigantes vertentes da pesquisa histórica - a "história das mentalidades" - surgiu como um instrumento de desmistificação destas falsas memórias coletivas, destas permanências ilusórias, buscando identificar as mudanças de atitude com relação a objetos que, diante de um exame mais rigoroso, subsistem apenas como palavras, cujo significado vai abarcando sempre novos conjuntos de elementos ao longo de sua história. Deste devir não escapam nem os nossos atos mais triviais e cotidianos, nem mesmo aquilo que parece ser mais imune às transformações: nossa relação com a morte.

É justamente este o tema do livro "História da Morte no Ocidente - da Idade Média aos nossos dias", do historiador francês Philippe Ariès (1914-1984). Não se trata, propriamente falando, de uma história, mas de um conjunto de quatro conferências apresentadas em uma universidade norte-americana, seguidas por doze artigos (publicados entre 1966 e 1975). Trata-se, portanto, muito mais de uma antologia, onde estão reunidos trabalhos de diversas origens.

Na primeira parte - as conferências - Ariès esboça realmente uma pequena história da morte, que vai desde a Idade Média até os dias atuais (neste caso, a primeira metade dos anos 70). É, sem dúvida, a parte mais rica do livro, mostrando como a relação do homem com a morte deixou de ser familiar (nos tempos medievais) para se transformar em uma experiência extremamente traumática (no mundo contemporâneo). Utilizando exemplos literários, ele nos apresenta o homem medieval como um ser bastante integrado à ordem natural, aceitando sua morte com a resignação de quem se vê apenas como membro de uma espécie.

Já nos fins da Idade Média, começam a surgir preocupações de outra ordem, a partir do momento em que o homem adquire consciência de sua individualidade (e, portanto, de "sua" morte e das perdas que ela representa). Os testemunhos privilegiados são, então, os testamentos, onde são expressas as últimas vontades daquele que deseja "ordenar" sua passagem para o outro mundo e garantir a salvação de sua alma. Neste estágio, podemos dizer que o homem torna-se "proprietário" de sua morte, como mais tarde será do seu túmulo.

O próximo passo é a consciência da morte do "outro", com o nascimento de uma nova sensibilidade, oriunda de um novo modelo de relação familiar. A família extensa patriarcal, fundamento da sociedade feudal, não serve mais para um mundo que se torna cada vez mais urbano e onde o poder já não é mais expresso pelo número de dependentes. Esta é a origem do luto ritualizado e do culto aos mortos nos cemitérios, algo que inexistia na Idade Média (quando os cemitérios eram apenas depósitos de cadáveres, quase sempre anônimos, a espera do juízo final).

Por fim, Ariès identifica um fenômeno que parece fechar o ciclo: a interdição da morte, transformada em tabu pelo mundo moderno. Longe de ser familiar, como para os medievais, a morte contemporânea é um acontecimento estranho e assustador, uma ruptura traumática com o cotidiano. O que parece ter contribuído para esta mudança é o grande aumento na expectativa geral de vida, tornando nossa morte e a dos que nos cercam uma perspectiva bastante vaga (mesmo que a realidade nos mostre o contrário).

A morte (sempre ela!) impediu Ariès de testemunhar o desenvolvimento destas mudanças, com a esperança de "salvação" cada vez mais transferida da religião para a ciência (das vacinas à criogenia, dos transplantes à clonagem). Mas a ciência, a grande patrocinadora da longevidade humana, não deixou de cobrar seu preço: o moribundo, que já transferira para a família quase todos os direitos sobre a sua morte, torna-se - no mundo atual - uma autêntica propriedade dos médicos. Depois de ser enclausurado em um hospital (do qual só sairá curado ou morto), o homem é compelido a outra espécie de resignação: não mais aos desígnios da natureza, mas ao poder daqueles que terminarão por transformá-lo num coadjuvante do seu próprio drama.

Cartas Pônticas


Regina Schöpke

Cartas Pônticas, de Ovídio. Tradução: Geraldo José Albino. Editora Martins Fontes, 169 páginas. R$ 36.

Em qualquer tempo ou lugar, o exílio sempre foi e será uma experiência dolorosa. Ser exilado é ser afastado de seu "lar", é perder o contato com o seu território, é ver serem cortadas as raízes afetivas longamente fixadas no solo da existência. Na dor e na melancolia que tomam conta de um desterrado, a mais bela cidade pode tornar-se uma prisão. Se isso já não fosse o bastante, o que dizer daquele que é expulso de um verdadeiro paraíso para ser lançado em uma terra inóspita, repleta de conflitos violentos e de inimigos por todos os lados? Porque foi exatamente essa a tragédia que marcou a última década de vida do poeta romano Publius Ovidius Naso (43 a.C.-17 d.C.). Ele, que conheceu a glória tão cedo, que escreveu obras tão valiosas e influentes como "A arte de amar" e "Metamorfoses", foi condenado a viver nos confins do Império romano pelo próprio imperador Augusto, no ano 8 de nossa era.

As razões desse exílio são até hoje ignoradas (ou, pelo menos, pouco precisas, porque não era segredo algum que o austero Augusto considerava a poesia amorosa de Ovídio um tanto licenciosa e até mesmo imoral). É verdade que a arte de Ovídio não servia tão bem aos interesses de Roma. Afinal, ele usava de seu talento para exaltar a arte de amar, bem mais do que a grandeza do Estado. Talvez isso soasse arrogante demais para um príncipe que se confundia com a própria glória do Império Romano ou talvez o verdadeiro incômodo estivesse ligado ao simples fato de Ovídio preferir tratar de um outro tipo de guerra e de conquista que não interessa nada ao poder. Sem dúvida, há algo de libertário e até mesmo de transgressor em seus poemas, ou seja, na forma como ele ensina indistintamente homens e mulheres a buscarem o prazer e a felicidade na entrega amorosa.

Sem dúvida, não é difícil entendermos o tormento e a dor profunda que Ovídio experimentou em seu exílio se pensarmos que ele viveu numa época em que o Império Romano concentrava um poder e um brilho nunca vistos (antes ou depois) na história da humanidade. Dona do mundo - ou do que se sabia ser o mundo no início de nossa era - a cidade de Roma reunia aquilo que havia de mais brilhante na civilização ocidental, tanto no âmbito do espírito quanto no da matéria. É por isso que, para Ovídio, estar fora de Roma era como morrer em vida, ainda que ele tenha conseguido preservar suas riquezas e também seu direito de escrever.

É claro que o canto do poeta mudou de tom nos seus últimos tempos de vida, perdendo boa parte de seu entusiasmo. Mas, como todo artista legítimo, ele transmutou a sua dor em inspiração e com ela alimentou a própria criação. Ele, que ensinara a arte de amar, que mostrara a força do corpo e dos sentidos (em geral, desprezados em nome de amores puramente espirituais); ele que, por fim, ensinara também a arte de esquecer um amor infeliz e a fugir daqueles que trazem consigo seguramente mais dor do que felicidade (embora jamais tenha ensinado a desistir de amar, porque isso é o mesmo que desistir covardemente de viver), escreve em seu desterro, entre outras obras, as "Cartas Pônticas" (que estão sendo lançadas pela editora Martins Fontes).

Mais do que imaginarmos a triste condição de Ovídio, podemos ouvir o seu próprio clamor, as suas próprias palavras reunidas nesses belos e comoventes escritos em forma epistolar. As "cartas", endereçadas a todos aqueles que poderiam, de uma forma ou de outra, ajudar a aliviar o seu tormento (mas também aos amigos mais íntimos e a esposa), expressavam rigorosamente o estado de espírito de Ovídio, forçado a viver nas fronteiras do Império, numa região onde a civilização cedia seu lugar à barbárie e onde mal se sabia onde terminava Roma e onde começava o inferno. O canto de amor cede lugar, então, às lamúrias, ao choro, aos pedidos incessantes de clemência e misericórdia. Em desespero, Ovídio não cansa de louvar Augusto, única esperança que ele tem de ver sua pena comutada. Em epístolas endereçadas a homens influentes como Fábio Máximo, Rufino, Messalino, Ático e Bruto (a quem pede para proteger esses poemas em seu "próprio teto"), vemos Ovídio lembrar insistentemente do valor da amizade e da fidelidade, embora na carta que escreve aos amigos, em geral, ele já mostre certo desencanto e desesperança ao perceber que ninguém parece ter coragem suficiente de intervir em seu nome. Até mesmo da esposa que ele diz acreditar na lealdade, ele a define como "pouco empreendedora".

Sim... as "Cartas Pônticas" revelam, em profundidade, a angústia de Ovídio. Há quem as julgue indignas do grande poeta que, mesmo sofrendo, deveria guardar certo decoro e brio. Mas, assim como não se pode censurar uma mulher abandonada por chorar pelo amor perdido (embora o próprio Ovídio ensine que é preciso rapidamente buscar esquecer aqueles que nos rejeitam e nos fazem mal, esforçando-se por lembrar mais de seus defeitos e faltas do que de suas qualidades), não se pode achar indigna a manifestação sincera dos sofrimentos da alma. Indigno realmente é o ato tirânico de Augusto e a passividade daqueles que diziam prezar e amar o grande poeta.

Em todo caso, as "cartas" não devem ser vistas apenas como relatos melancólicos, mas também como registros históricos e geográficos acerca da belicosa Tomi (região situada na atual Romênia). Além disso, elas mostram com grande riqueza de detalhes a trama de relações na qual Ovídio estava enredado. A tirania, de fato, pode ter feito tombar o homem, mas nada pôde fazer contra o artista ou, pelo menos, não conseguiu silenciar a arte de Ovídio, que ainda hoje, decorridos dois milênios, continua tão viva e poderosa como nunca. O verdadeiro exílio talvez não tenha sido o do poeta, mas o do próprio Amor, deixado sempre em segundo plano pela humanidade e (pelo visto) entendido claramente como perigoso num mundo cheio de "mise en scène" e ligações superficiais.

O homem e o livro: uma relação de amor e ódio


O Estado de São Paulo, domingo, 3 de agosto de 2003

Mauro Baladi

Livro e Liberdade, de Luciano Canfora. Tradução: Antonio de Padua Danesi. Casa da Palavra/Ateliê Editorial, 104 páginas

É somente através do amor pelos animais e pelos livros que o homem consegue perceber o quanto são frustrantes todas as suas outras relações – que, na maioria das vezes, dependem dos interesses, paixões e caprichos mais diversos. No contato com os animais e com os livros, experimentamos a fantástica possibilidade de estabelecer uma ligação afetiva direta e totalmente sincera, sem os subterfúgios e rituais aos quais estamos necessariamente condicionados pelo convívio social. E o que mais surpreende neste “negócio” (pois estamos falando de uma relação de troca) é que sempre recebemos infinitamente mais do que podemos dar.

Nossa comparação torna-se ainda mais pertinente quando constatamos que ambos – livros e animais – têm outro ponto em comum: estão muito mais “vivos” do que a maior parte de nós. Se os animais vivem totalmente de acordo com as “leis” da natureza, numa plenitude que nem ao menos podemos imaginar, os livros dispõe – mesmo que virtualmente – de uma qualidade que todos invejamos (ou deveríamos invejar): a imortalidade. Em todas as suas formas (placas de argila, rolos de papiro, pergaminho, papel, disquetes de computador...) os livros têm se mostrado, ao longo dos séculos, bem mais perenes do que aqueles que os escreveram.

Porém, tal como os deuses e os monstros, o livro é uma criação humana que ganhou vida própria e poderes que, na opinião de muitos, deveriam ser rigorosamente controlados (ou, se possível, suprimidos). É sobre este poder de sedução “diabólico” dos livros e sobre as inúmeras tentativas de “exorcizá-lo” que o escritor italiano Luciano Canfora nos fala em seu “Livro e Liberdade” (um lançamento Casa da Palavra e Ateliê Editorial). Sem a pretensão de fazer uma história do livro e de sua relação com os homens (admiradores ou inimigos), Canfora prefere o tom da conversa erudita, valendo-se de exemplos que ele vai buscar na realidade e na própria literatura.

Logo de início, Canfora apresenta-nos um personagem emblemático: Dom Quixote. Trata-se – segundo pensam quase todos aqueles que o cercam – de uma “vítima” dos livros que, como sereias, o enfeitiçaram com seu chamado para a aventura. Porém, são justamente a rejeição à mediocridade do mundo real e a busca por um plano superior de existência que fazem de Dom Quixote um legítimo herdeiro dos heróis medievais que ele tanto admirava (e também dos verdadeiros artistas e filósofos de todos os tempos). Queimados os seus livros – pela “inquisição” doméstica – e lacrada a biblioteca infernal, resta ao velho cavaleiro buscar a transição definitiva para um outro mundo, através da morte redentora.

Outro exemplo, desta vez real, é a legendária Biblioteca de Alexandria, fundada no Egito por Ptomoleu Sóter, em meados do século IV a.C. Esta gigantesca biblioteca – que, segundo a tradição, conteria boa parte de todo o saber produzido até então – foi vítima de uma longa série de saques e incêndios, vindo a ser completamente destruída pelos conquistadores muçulmanos, no século VII. É bastante sugestivo que o mais importante depósito de livros de todos os tempos tenha sido justamente o alvo preferencial daqueles que desejavam monopolizar o saber ou aniquilá-lo.

Mas não se restringem aos tempos mais remotos as trágicas relações entre os livros e o fogo. Lembrando os célebres processos envolvendo Giordano Bruno e Galileu, Canfora mostra como o saber (e o livro, seu instrumento privilegiado) é uma ameaça concreta para todo o tipo de poder que se fundamenta na ignorância e no obscurantismo (uma imensa maioria, se observarmos bem). A Igreja queimava livros (e, em alguns casos, os próprios autores) em plena Renascença, os nazistas queimaram livros em 1933 (deixando os “autores” para mais tarde) e ainda há muito fogo pela frente, se acreditarmos na anti-utopia de Ray Bradbury, em seu genial livro “Fahrenheit 451”.

Na obra de Bradbury, os bombeiros do futuro são agentes encarregados da apreensão e queima de todos os livros, enquanto a população desfruta do mais aprazível entorpecimento mental e espiritual. Porém, alguns elementos marginais, insatisfeitos com a nova ordem, reúnem-se numa comunidade alternativa, onde cada indivíduo assume a tarefa de memorizar todo o conteúdo de seu livro preferido, do qual se tornará um relicário vivo. É justamente aí, nesta bela metáfora, que encontramos o segredo da imortalidade dos livros: não se trata da sobrevivência da matéria (que nada mais é que um suporte), mas de uma virtualidade que se efetua a cada leitura, a cada evocação em qualquer ponto do espaço ou do tempo. Somos, então, responsáveis pela vida dos livros, e também pela sua morte.

Sem se preocupar em chegar a conclusões precisas ou em fechar questões, “Livro e Liberdade” padece de uma certa superficialidade. O autor transita por inúmeros temas que ele raramente desenvolve, para lástima dos seus leitores. Porém, como já dissemos, trata-se bem mais de uma conversa (bastante agradável, aliás) do que de uma obra histórica ortodoxa ou de um tratado científico. O principal objetivo de Canfora parece ser lembrar-nos de que a trajetória do livro está longe de ser tranquila e aprazível, lembrando mais uma trilha aberta em plena selva, onde os perigos espreitam em toda parte.

Podemos dizer, sem risco de exagero, que o livro é um excelente instrumento para avaliarmos nossa sociedade. O que se escreve (ou não se escreve) e o que se lê (ou não se lê) são indicadores precisos de quem somos e do que poderemos ser.

QUANDO O HOMEM PARA DE PULSAR


O Estado de São Paulo, Domingo, 26 de Abril de 2009

Regina Schöpke

O Caráter Impulsivo, Wilhelm Reich. Tradução de Maya Hantower. Martins Fontes, 120 págs., R$ 29,80

O psiquiatra e psicanalista austríaco Wilhelm Reich (1897-1957) foi injustamente acusado de muitas coisas, dentre elas, de ser um utópico que desejava acabar com o desprazer do mundo. Mas Reich, que foi (segundo pensamos) o discípulo mais genial de Freud, exatamente por ter rompido com ele e levado ainda mais longe a busca pela compreensão da "doença humana" (nesse ponto, é preciso concordar com Nietzsche quando ele diz que o verdadeiro discípulo só faz jus ao seu mestre quando o ultrapassa, quando joga o dardo mais longe), tinha perfeita consciência de que não há prazer e alegria de viver "sem lutas, sem experiências dolorosas e embates desagradáveis consigo mesmo", de modo que sua questão era exatamente o contrário.

Reich, é claro, queria devolver ao homem a capacidade perdida (já na infância) de pulsar, de sentir prazer real, pois sabia bem que a educação tradicional produz um homem que foge tão continuamente da dor que termina por se "encouraçar" também para as alegrias, já que uma não existe sem a outra. Então, não se trata de acabar com as dores do mundo, mas de estar vivo o suficiente para não endurecer. Como diz Reich, "a capacidade de suportar o desprazer e a dor sem se tornar amargurado e sem se refugiar na rigidez anda de mãos dadas com a capacidade de aceitar a felicidade e dar amor".

A doença começa (em todos os sentidos e em todos os indivíduos) quando o homem para de pulsar, de sentir, de viver intensamente, isso é ser "encouraçado". Mas Nietzsche diria que esse é o homem em geral (eis por que era necessário ultrapassá-lo, inventar um novo homem). Reich, que conhecia bem Nietzsche, e também Bergson (a quem admirava pela sua ideia da energia vital), reconhecia a extensão da doença humana e, por isso mesmo, não soava mal para ele a afirmação nietzschiana de que "o homem é um animal doente". Para Reich, tanto quanto para Nietzsche, esse adoecimento tem um fundo social e cultural, ou seja, faz parte de um atavismo milenar que termina por produzir homens fracos, cindidos, impotentes.

É fato que a psicanálise trouxe inicialmente uma espécie de euforia para os meios intelectuais, ajudando a derrubar, com o avanço dos estudos acerca do inconsciente, o mito da razão soberana (já tão atacada por Nietzsche). Mas apesar de Reich concordar com várias concepções da psicanálise, ele sente que ela permanece numa esfera demasiado intelectual para dar conta das conexões mais sutis entre o corpo e a mente, e isso já pode ser sentido mesmo em sua fase psicanalítica, como podemos observar pela leitura da obra O Caráter Impulsivo.

Percebendo que não se tratava apenas de buscar a cura (ou a melhora) de psicóticos, neuróticos ou esquizofrênicos, mas de entender a extensão e as causas da aparente predisposição do homem para a infelicidade, Reich vai em busca da gênese das neuroses a fim de explicar a generalização da doença humana, ou seja, esse estado de fraqueza e apatia mórbidas e socialmente cultivadas, em que os seres humanos, em vez de crescerem e enfrentarem a vida como adultos, permanecem como crianças, imaturos do ponto de vista emocional e afetivo (aquilo que Federico Fellini chamou tão bem de "bezerrões", já que não conseguem parar de "mamar" e de correr atrás da mamãe). Em certos casos, pode-se dizer que alguns nem conseguiram sair inteiramente do útero, continuando presos por um cordão umbilical virtual. Não é sem razão que a humanidade parece estar sempre à espera de salvadores, mestres e pastores que lhe ensinem a viver; e, num nível ainda mais corriqueiro e estimulado pela própria sociedade, vemos os homens buscando na "esposa ideal" o modelo da "mamãe" passiva e resignada.

E esse é apenas um dos exemplos de relações adoecidas, pois - como mostra Reich - o resultado de um mau desenvolvimento da libido e da afetividade termina por gerar distúrbios de toda a ordem: mulheres que buscam o pai ou mesmo a mãe nas suas relações, homens que buscam metaforicamente "mulheres de pênis", etc., sem contar as inúmeras perversões sexuais, transtornos de agressividade e uma moral compulsiva que acompanham a má formação da libido. Há quem julgue essas ideias sujas e perversas, mas o que Reich chama de "resignação neurótica" parece explicar muito melhor o niilismo humano e a falta de coragem para viver do que o mito maniqueísta da religião. Além do mais, sujo e pervertido é manter relações falsas e viver traindo a quem se diz amar e respeitar. Antes mesmo de criar a sua "Análise do caráter" - e, posteriormente, a sua "Orgonoterapia" -, Reich nos mostra que as pulsões não podem ser suprimidas, mas apenas sublimadas ou deslocadas, e é por isso que o papel da educação se torna tão vital.

É verdade que Reich acreditava no amor e na felicidade, e também numa sexualidade saudável (uma razão a mais para ser chamado de maluco e pornográfico num mundo tão cheio de perversões e ódios). Mas ele não era utópico. Ele sabia que a vida é feita de altos e baixos, de alegrias e tristezas, mas também sabia que aquele que se mantém vivo e pleno, pulsante e vibrante, será capaz de não endurecer, de não perder o élan, o vigor, a alegria de viver, até o fim. Para Reich, nada é mais equivocado, em Freud, do que a idéia da pulsão de morte como uma pulsão primária. A pulsão de morte é, ao contrário, a própria doença humana, o niilismo que Nietzsche tanto atacou. Viver é pulsar, é rir e chorar, é sofrer e ter prazer, e é sobretudo querer estar "aqui" e gozar até o fim o privilégio de ser, ser consigo mesmo e com os outros, de um modo pleno, profundo, ativo, real. Ser feliz é viver fora da farsa, da inautêntica existência que nos transforma em atores de nossa própria vida. Ser feliz é simplesmente deixar o palco para viver de verdade.

sábado, 3 de outubro de 2009

Liberdade, igualdade, artificialidade



O GLOBO - Blog do Prosa & Verso (28/09/2009)

Regina Schöpke

A invenção dos direitos humanos, de Lynn Hunt. Tradução de Rosaura Eichenberg. Companhia das Letras, 285 páginas. R$ 48

Discutir aquilo que é natural ou artificial no homem já não parece mais interessar tanto à filosofia, sobretudo àquela que se desdobrou do pensamento nietzschiano e, posteriormente, do existencialismo. De fato, já não é mais possível pensar o homem e os seus valores como essências eternas e imutáveis, acima das vicissitudes da história. Porém, isso também não quer dizer que o homem seja uma tábula rasa (afinal, como um ser biológico, como parte da natureza, ele é um conjunto de virtualidades e potencialidades). Seja como for, a cultura, a civilização, é mesmo uma espécie de "mundo próprio" criado pelo homem, onde até aquilo que parece mais simples e espontâneo tem uma história, uma genealogia. "A existência precede a essência", diz Sartre, e isso resume bem as coisas: o homem é um ser que se inventa, que se constrói no próprio ato de existir, na sua relação com o mundo e com os outros.

É seguindo esta trilha - já tão brilhantemente desbravada por Michel Foucault - da criação dos valores e mesmo dos sentimentos, que se insere o livro "A invenção dos direitos humanos", da historiadora americana Lynn Hunt. Especialista em história européia e, sobretudo, em temas relacionados à Revolução Francesa, Hunt desenvolve um pertinente estudo sobre a gênese de uma ideia que, para muitos, parece eterna e natural: a ideia do direito à vida e à liberdade. Infelizmente, embora fosse esse o desejo de quase todos nós, não existe qualquer garantia real de que os direitos humanos sejam sempre respeitados e, mais ainda, que sejam evidentes (para usar um termo da própria autora). Ao contrário, para Hunt, antes do Iluminismo do século XVIII (e, é claro, muito tempo depois dele também), a ideia de que somos todos iguais em direitos, ou livres por natureza, só encontra algum solo favorável onde tenha se produzido (ou se criado) uma espécie de empatia geral entre os homens (algo que ela vincula claramente à filosofia e à arte).

De fato, para que os direitos humanos se estabeleçam e funcionem é preciso que os homens se vejam e se sintam como iguais, ou seja, é preciso que esta ideia esteja de tal forma interiorizada nos indivíduos, que ela seja sentida como uma "verdade autoevidente". É claro que isso não é nada simples. É só observarmos como os próprios povos que primeiramente promoveram essa ideia (no caso, os norte-americanos e os franceses) estiveram longe de praticá-la plenamente: os Estados Unidos conservaram a escravidão por quase um século após a independência e os franceses mantiveram, até tempos bem recentes, um sistema colonial opressivo e violento. Uma contradição "autoevidente", sem dúvida, mas que ilustra bem o caráter ideal (e não tão real) dos próprios direitos humanos.

Dizer, no entanto, que tais direitos não são naturais ou autoevidentes não implica em afirmar que o homem é o único ser que pode ir além de uma natureza pensada como injusta e cruel (como sempre nos lembra José Saramago, a crueldade é uma característica absolutamente humana, não existindo exploração, escravidão ou mortes desnecessárias na natureza). O que ocorre é que, assim como os direitos humanos, a "desumanidade" é uma invenção nossa, e desde que o homem é homem, ou desde que ele conseguiu produzir suas primeiras ferramentas, o mundo vive "em guerra". E é aqui que entram - como bem observa Hunt - a filosofia e a arte: para ajudarem a produzir um ser humano mais condizente com a razão da qual ele tanto se orgulha.

É interessante a perspectiva de Hunt, que mostra como o romance foi o gênero que mais contribuiu para a produção de uma empatia real entre os homens do século XVIII e XIX. Isso ocorre porque ele permite um aprofundamento psicológico e um envolvimento afetivo quase impossíveis na vida real. Se todos choravam ao ler a "Nova Heloísa" de Rousseau - como diz a autora - independente de classe ou fortuna, é porque o romance (ou a arte em geral) pode ir além do simbólico e atingir uma linguagem universal, que é a dos sentimentos.

É claro que a invenção dos direitos humanos é bem mais complexa do que parece à primeira vista. Examinando as três principais declarações de direitos (a de 1776, por ocasião da Independência dos EUA; a de 1789, na França revolucionária, e a de 1948, promulgada pelas Nações Unidas e conhecida como a "Declaração universal dos direitos do homem"), fica evidente que estamos realmente diante de uma proposição de ideais, muito mais do que de uma realidade concreta. Mas, seja como for, é preciso lutar por estes ideais, diria Voltaire, ou então caímos na barbárie absoluta. Em outras palavras, os direitos humanos são uma conquista, um refinamento da civilização ou, simplesmente, o resultado de uma luta incessante contra a tirania, a opressão e a exploração (também não tão naturais quanto se pensa).

É verdade que muitos vêem com cinismo a ideia dos direitos do homem, ou seja, que muitos a enxergam como mais uma das "ficções humanas", mas ver o outro como um igual faz parte de um aprendizado social tanto quanto a tirania e o desrespeito à vida são frutos de uma educação que se mostra indiferente às dores e aos sofrimentos dos outros seres (sejam eles humanos ou animais). Sim, o homem é uma construção, e se hoje já é possível até falar em direitos dos animais é porque é necessário continuar refinando nossa razão e sensibilidade. Afinal, rir e zombar do homem é fácil; o difícil é ter potência para construir um homem que seja, de fato, mais justo, mais nobre e mais verdadeiramente "humano".