terça-feira, 13 de outubro de 2009

O carnaval em que os miseráveis se sublevaram contra as injustiças


O GLOBO, sábado, 7 de Dezembro de 2002

O CARNAVAL DE ROMANS, DE EMMANUEL LE ROY LADURIE. TRADUÇÃO: MARIA LÚCIA MACHADO. COMPANHIA DAS LETRAS, 433 PÁGINAS

Mauro Baladi

Cada vez mais, nossa idéia de carnaval é a de um longo feriado prolongado, ocasião para dias de descanso ou para assistir, de preferência pela TV, a um monótono desfile de escolas de samba. Porém, o carnaval já foi uma festa religiosa e, mais que isso, uma época para abolir (ou limitar) as pressões morais e sociais. Em sua natureza, o carnaval é justamente este período caótico que hoje faz com que os burgueses precavidos busquem refúgio seguro e aprazível.

Porém, é por ser uma época de "relaxamento" dos costumes, de euforia insensata e catarse, que esta festa, fundamentalmente pagã, pode propiciar tragédias. É o caso do célebre Carnaval de Romans, magnificamente descrito no livro homônimo do historiador francês Emmanuel Le Roy Ladurie. Um dos grandes da historiografia contemporânea, Ladurie dedica-se ao estudo da formação do Estado francês (nos séculos XI e XVII), usando os métodos da chamada Nova História. Longe de privilegiar personalidades marcantes ou acontecimentos isolados, ele busca abarcar em profundidade os diversos aspectos de um campo social, delimitado geográfica e cronologicamente.

Neste livro, o personagem principal é a pequena cidade de Romans (na antiga região do Delfinado, no sul da França), entre 1579 e 1580. Com pouco mais de 7.500 habitantes, Romans resume os grandes conflitos de sua época: as crescentes oposições entre nobres e burgueses, elite e povo, cidade e campo, católicos e protestantes. Não estamos mais presos na impermeável pirâmide social do feudalismo e, entre a nobreza e os camponeses, impõe-se uma dinâmica classe de comerciantes e pequenos industriais (como de couro e tecidos), que reivindicam sua parte nas honras e no poder.

Mas a nova estrutura social não parece afetar a nobreza, que continua a desfrutar dos privilégios "sagrados" de sua condição. A mudança, quando ocorre, demonstra apenas a venalidade do Estado Moderno, com o enobrecimento de burgueses. Dentre os privilégios, o mais notável é a isenção fiscal, que premiava boa parte da elite romanesa. Os pesados impostos e tributos eventuais (especialmente para o custeio de guerras) recaíam sobre os que tinham a triste necessidade de trabalhar para o sustento.

Devido à insustentável carga tributária que os oprimia e aos abusos do poder, camponeses e artesãos de Romans empreenderam uma luta contra os privilégios das elites, símbolo da injustiça social. Mesmo sem caráter especificamente revolucionário, os acontecimentos de Romans prenunciam a insatisfação que resultaria, dois séculos depois, na Revolução Francesa.

Vendo a inutilidade de suas reivindicações pacíficas (já que a Justiça era um acessório da nobreza), partiu-se para medidas mais concretas, que resultaram na ocupação de Romans no carnaval de 1580, comandada pelo fabricante de tecidos Jean Serve (Paumier). Mas a reação dos poderosos, ameaçados pela fúria da plebe, não se faz esperar: a frágil coalizão entre camponeses miseráveis e "proletários" citadinos não resistiu ao primeiro confronto sangrento (mais de 20 mortos, entre eles Paumier).

Devolvida à normalidade administrativa, Romans é "purificada" pelo juiz Guérin, que se encarrega de punir com a lei quem ousou desafiar seu poder. No campo, a luta é mais consistente e a repressão, mais violenta, com o massacre dos revoltosos. É uma revolta popular que contém todos os elementos para conhecermos a fundo o funcionamento da sociedade francesa do século XVI. Porém, ainda mais importante é constatar que questões levantadas há 400 anos ainda atormentam a realidade social (as injustiças fiscais, a luta pela terra, abusos e violência dos poderosos...). O que nos traz à lembrança a máxima, repetida por Ladurie, de que "não há nada de novo sob o sol".