domingo, 4 de outubro de 2009

Cartas Pônticas


Regina Schöpke

Cartas Pônticas, de Ovídio. Tradução: Geraldo José Albino. Editora Martins Fontes, 169 páginas. R$ 36.

Em qualquer tempo ou lugar, o exílio sempre foi e será uma experiência dolorosa. Ser exilado é ser afastado de seu "lar", é perder o contato com o seu território, é ver serem cortadas as raízes afetivas longamente fixadas no solo da existência. Na dor e na melancolia que tomam conta de um desterrado, a mais bela cidade pode tornar-se uma prisão. Se isso já não fosse o bastante, o que dizer daquele que é expulso de um verdadeiro paraíso para ser lançado em uma terra inóspita, repleta de conflitos violentos e de inimigos por todos os lados? Porque foi exatamente essa a tragédia que marcou a última década de vida do poeta romano Publius Ovidius Naso (43 a.C.-17 d.C.). Ele, que conheceu a glória tão cedo, que escreveu obras tão valiosas e influentes como "A arte de amar" e "Metamorfoses", foi condenado a viver nos confins do Império romano pelo próprio imperador Augusto, no ano 8 de nossa era.

As razões desse exílio são até hoje ignoradas (ou, pelo menos, pouco precisas, porque não era segredo algum que o austero Augusto considerava a poesia amorosa de Ovídio um tanto licenciosa e até mesmo imoral). É verdade que a arte de Ovídio não servia tão bem aos interesses de Roma. Afinal, ele usava de seu talento para exaltar a arte de amar, bem mais do que a grandeza do Estado. Talvez isso soasse arrogante demais para um príncipe que se confundia com a própria glória do Império Romano ou talvez o verdadeiro incômodo estivesse ligado ao simples fato de Ovídio preferir tratar de um outro tipo de guerra e de conquista que não interessa nada ao poder. Sem dúvida, há algo de libertário e até mesmo de transgressor em seus poemas, ou seja, na forma como ele ensina indistintamente homens e mulheres a buscarem o prazer e a felicidade na entrega amorosa.

Sem dúvida, não é difícil entendermos o tormento e a dor profunda que Ovídio experimentou em seu exílio se pensarmos que ele viveu numa época em que o Império Romano concentrava um poder e um brilho nunca vistos (antes ou depois) na história da humanidade. Dona do mundo - ou do que se sabia ser o mundo no início de nossa era - a cidade de Roma reunia aquilo que havia de mais brilhante na civilização ocidental, tanto no âmbito do espírito quanto no da matéria. É por isso que, para Ovídio, estar fora de Roma era como morrer em vida, ainda que ele tenha conseguido preservar suas riquezas e também seu direito de escrever.

É claro que o canto do poeta mudou de tom nos seus últimos tempos de vida, perdendo boa parte de seu entusiasmo. Mas, como todo artista legítimo, ele transmutou a sua dor em inspiração e com ela alimentou a própria criação. Ele, que ensinara a arte de amar, que mostrara a força do corpo e dos sentidos (em geral, desprezados em nome de amores puramente espirituais); ele que, por fim, ensinara também a arte de esquecer um amor infeliz e a fugir daqueles que trazem consigo seguramente mais dor do que felicidade (embora jamais tenha ensinado a desistir de amar, porque isso é o mesmo que desistir covardemente de viver), escreve em seu desterro, entre outras obras, as "Cartas Pônticas" (que estão sendo lançadas pela editora Martins Fontes).

Mais do que imaginarmos a triste condição de Ovídio, podemos ouvir o seu próprio clamor, as suas próprias palavras reunidas nesses belos e comoventes escritos em forma epistolar. As "cartas", endereçadas a todos aqueles que poderiam, de uma forma ou de outra, ajudar a aliviar o seu tormento (mas também aos amigos mais íntimos e a esposa), expressavam rigorosamente o estado de espírito de Ovídio, forçado a viver nas fronteiras do Império, numa região onde a civilização cedia seu lugar à barbárie e onde mal se sabia onde terminava Roma e onde começava o inferno. O canto de amor cede lugar, então, às lamúrias, ao choro, aos pedidos incessantes de clemência e misericórdia. Em desespero, Ovídio não cansa de louvar Augusto, única esperança que ele tem de ver sua pena comutada. Em epístolas endereçadas a homens influentes como Fábio Máximo, Rufino, Messalino, Ático e Bruto (a quem pede para proteger esses poemas em seu "próprio teto"), vemos Ovídio lembrar insistentemente do valor da amizade e da fidelidade, embora na carta que escreve aos amigos, em geral, ele já mostre certo desencanto e desesperança ao perceber que ninguém parece ter coragem suficiente de intervir em seu nome. Até mesmo da esposa que ele diz acreditar na lealdade, ele a define como "pouco empreendedora".

Sim... as "Cartas Pônticas" revelam, em profundidade, a angústia de Ovídio. Há quem as julgue indignas do grande poeta que, mesmo sofrendo, deveria guardar certo decoro e brio. Mas, assim como não se pode censurar uma mulher abandonada por chorar pelo amor perdido (embora o próprio Ovídio ensine que é preciso rapidamente buscar esquecer aqueles que nos rejeitam e nos fazem mal, esforçando-se por lembrar mais de seus defeitos e faltas do que de suas qualidades), não se pode achar indigna a manifestação sincera dos sofrimentos da alma. Indigno realmente é o ato tirânico de Augusto e a passividade daqueles que diziam prezar e amar o grande poeta.

Em todo caso, as "cartas" não devem ser vistas apenas como relatos melancólicos, mas também como registros históricos e geográficos acerca da belicosa Tomi (região situada na atual Romênia). Além disso, elas mostram com grande riqueza de detalhes a trama de relações na qual Ovídio estava enredado. A tirania, de fato, pode ter feito tombar o homem, mas nada pôde fazer contra o artista ou, pelo menos, não conseguiu silenciar a arte de Ovídio, que ainda hoje, decorridos dois milênios, continua tão viva e poderosa como nunca. O verdadeiro exílio talvez não tenha sido o do poeta, mas o do próprio Amor, deixado sempre em segundo plano pela humanidade e (pelo visto) entendido claramente como perigoso num mundo cheio de "mise en scène" e ligações superficiais.