domingo, 4 de outubro de 2009

PHILIPPE ARIÈS E O NASCIMENTO DA MORTE


JORNAL DO BRASIL, SÁBADO, 17 de maio de 2003

Mauro Baladi

História da Morte no Ocidente, de Philippe Ariès. Tradução: Priscila Vianna de Siqueira, Ediouro.

Somos muitas vezes tomados por aquilo que poderíamos chamar de "ilusão retrospectiva", pela crença de que nossos atos, valores e anseios - assim como as idéias que os motivam e legitimam - estiveram e estarão sempre presentes no homem e em suas sociedades. Temos a confortadora impressão de que trabalhamos, nos casamos e nos relacionamos com nossos amigos ou com o dinheiro como fizeram nossos pais e avós, descontadas as comodidades e exigências do mundo atual. Assim, consideramos que as mudanças - quando se tornam por demais perceptíveis - são simples acidentes passageiros e reversíveis, que se dão em objetos atemporais (a família, o Estado, o amor...), essencialmente perfeitos e isentos de corrupção.

Uma das características desta ilusão é nos convencer de que as palavras - tais como "honra", "moral" ou "amizade" - trazem sempre consigo um sentido absoluto que nós, individualmente ou em sociedade, somos mais ou menos capazes de compreender e traduzir para nossa existência. Tal como Sócrates, nos diálogos platônicos, achamos que os exemplos concretos devem, necessariamente, reproduzir - com maior ou menor fidelidade - modelos que nos servem como parâmetros de avaliação (o que autoriza os moralistas a dizerem, por exemplo, que a humanidade atual está degenerada ou decadente).

Porém, uma das mais instigantes vertentes da pesquisa histórica - a "história das mentalidades" - surgiu como um instrumento de desmistificação destas falsas memórias coletivas, destas permanências ilusórias, buscando identificar as mudanças de atitude com relação a objetos que, diante de um exame mais rigoroso, subsistem apenas como palavras, cujo significado vai abarcando sempre novos conjuntos de elementos ao longo de sua história. Deste devir não escapam nem os nossos atos mais triviais e cotidianos, nem mesmo aquilo que parece ser mais imune às transformações: nossa relação com a morte.

É justamente este o tema do livro "História da Morte no Ocidente - da Idade Média aos nossos dias", do historiador francês Philippe Ariès (1914-1984). Não se trata, propriamente falando, de uma história, mas de um conjunto de quatro conferências apresentadas em uma universidade norte-americana, seguidas por doze artigos (publicados entre 1966 e 1975). Trata-se, portanto, muito mais de uma antologia, onde estão reunidos trabalhos de diversas origens.

Na primeira parte - as conferências - Ariès esboça realmente uma pequena história da morte, que vai desde a Idade Média até os dias atuais (neste caso, a primeira metade dos anos 70). É, sem dúvida, a parte mais rica do livro, mostrando como a relação do homem com a morte deixou de ser familiar (nos tempos medievais) para se transformar em uma experiência extremamente traumática (no mundo contemporâneo). Utilizando exemplos literários, ele nos apresenta o homem medieval como um ser bastante integrado à ordem natural, aceitando sua morte com a resignação de quem se vê apenas como membro de uma espécie.

Já nos fins da Idade Média, começam a surgir preocupações de outra ordem, a partir do momento em que o homem adquire consciência de sua individualidade (e, portanto, de "sua" morte e das perdas que ela representa). Os testemunhos privilegiados são, então, os testamentos, onde são expressas as últimas vontades daquele que deseja "ordenar" sua passagem para o outro mundo e garantir a salvação de sua alma. Neste estágio, podemos dizer que o homem torna-se "proprietário" de sua morte, como mais tarde será do seu túmulo.

O próximo passo é a consciência da morte do "outro", com o nascimento de uma nova sensibilidade, oriunda de um novo modelo de relação familiar. A família extensa patriarcal, fundamento da sociedade feudal, não serve mais para um mundo que se torna cada vez mais urbano e onde o poder já não é mais expresso pelo número de dependentes. Esta é a origem do luto ritualizado e do culto aos mortos nos cemitérios, algo que inexistia na Idade Média (quando os cemitérios eram apenas depósitos de cadáveres, quase sempre anônimos, a espera do juízo final).

Por fim, Ariès identifica um fenômeno que parece fechar o ciclo: a interdição da morte, transformada em tabu pelo mundo moderno. Longe de ser familiar, como para os medievais, a morte contemporânea é um acontecimento estranho e assustador, uma ruptura traumática com o cotidiano. O que parece ter contribuído para esta mudança é o grande aumento na expectativa geral de vida, tornando nossa morte e a dos que nos cercam uma perspectiva bastante vaga (mesmo que a realidade nos mostre o contrário).

A morte (sempre ela!) impediu Ariès de testemunhar o desenvolvimento destas mudanças, com a esperança de "salvação" cada vez mais transferida da religião para a ciência (das vacinas à criogenia, dos transplantes à clonagem). Mas a ciência, a grande patrocinadora da longevidade humana, não deixou de cobrar seu preço: o moribundo, que já transferira para a família quase todos os direitos sobre a sua morte, torna-se - no mundo atual - uma autêntica propriedade dos médicos. Depois de ser enclausurado em um hospital (do qual só sairá curado ou morto), o homem é compelido a outra espécie de resignação: não mais aos desígnios da natureza, mas ao poder daqueles que terminarão por transformá-lo num coadjuvante do seu próprio drama.