sábado, 3 de outubro de 2009

Liberdade, igualdade, artificialidade



O GLOBO - Blog do Prosa & Verso (28/09/2009)

Regina Schöpke

A invenção dos direitos humanos, de Lynn Hunt. Tradução de Rosaura Eichenberg. Companhia das Letras, 285 páginas. R$ 48

Discutir aquilo que é natural ou artificial no homem já não parece mais interessar tanto à filosofia, sobretudo àquela que se desdobrou do pensamento nietzschiano e, posteriormente, do existencialismo. De fato, já não é mais possível pensar o homem e os seus valores como essências eternas e imutáveis, acima das vicissitudes da história. Porém, isso também não quer dizer que o homem seja uma tábula rasa (afinal, como um ser biológico, como parte da natureza, ele é um conjunto de virtualidades e potencialidades). Seja como for, a cultura, a civilização, é mesmo uma espécie de "mundo próprio" criado pelo homem, onde até aquilo que parece mais simples e espontâneo tem uma história, uma genealogia. "A existência precede a essência", diz Sartre, e isso resume bem as coisas: o homem é um ser que se inventa, que se constrói no próprio ato de existir, na sua relação com o mundo e com os outros.

É seguindo esta trilha - já tão brilhantemente desbravada por Michel Foucault - da criação dos valores e mesmo dos sentimentos, que se insere o livro "A invenção dos direitos humanos", da historiadora americana Lynn Hunt. Especialista em história européia e, sobretudo, em temas relacionados à Revolução Francesa, Hunt desenvolve um pertinente estudo sobre a gênese de uma ideia que, para muitos, parece eterna e natural: a ideia do direito à vida e à liberdade. Infelizmente, embora fosse esse o desejo de quase todos nós, não existe qualquer garantia real de que os direitos humanos sejam sempre respeitados e, mais ainda, que sejam evidentes (para usar um termo da própria autora). Ao contrário, para Hunt, antes do Iluminismo do século XVIII (e, é claro, muito tempo depois dele também), a ideia de que somos todos iguais em direitos, ou livres por natureza, só encontra algum solo favorável onde tenha se produzido (ou se criado) uma espécie de empatia geral entre os homens (algo que ela vincula claramente à filosofia e à arte).

De fato, para que os direitos humanos se estabeleçam e funcionem é preciso que os homens se vejam e se sintam como iguais, ou seja, é preciso que esta ideia esteja de tal forma interiorizada nos indivíduos, que ela seja sentida como uma "verdade autoevidente". É claro que isso não é nada simples. É só observarmos como os próprios povos que primeiramente promoveram essa ideia (no caso, os norte-americanos e os franceses) estiveram longe de praticá-la plenamente: os Estados Unidos conservaram a escravidão por quase um século após a independência e os franceses mantiveram, até tempos bem recentes, um sistema colonial opressivo e violento. Uma contradição "autoevidente", sem dúvida, mas que ilustra bem o caráter ideal (e não tão real) dos próprios direitos humanos.

Dizer, no entanto, que tais direitos não são naturais ou autoevidentes não implica em afirmar que o homem é o único ser que pode ir além de uma natureza pensada como injusta e cruel (como sempre nos lembra José Saramago, a crueldade é uma característica absolutamente humana, não existindo exploração, escravidão ou mortes desnecessárias na natureza). O que ocorre é que, assim como os direitos humanos, a "desumanidade" é uma invenção nossa, e desde que o homem é homem, ou desde que ele conseguiu produzir suas primeiras ferramentas, o mundo vive "em guerra". E é aqui que entram - como bem observa Hunt - a filosofia e a arte: para ajudarem a produzir um ser humano mais condizente com a razão da qual ele tanto se orgulha.

É interessante a perspectiva de Hunt, que mostra como o romance foi o gênero que mais contribuiu para a produção de uma empatia real entre os homens do século XVIII e XIX. Isso ocorre porque ele permite um aprofundamento psicológico e um envolvimento afetivo quase impossíveis na vida real. Se todos choravam ao ler a "Nova Heloísa" de Rousseau - como diz a autora - independente de classe ou fortuna, é porque o romance (ou a arte em geral) pode ir além do simbólico e atingir uma linguagem universal, que é a dos sentimentos.

É claro que a invenção dos direitos humanos é bem mais complexa do que parece à primeira vista. Examinando as três principais declarações de direitos (a de 1776, por ocasião da Independência dos EUA; a de 1789, na França revolucionária, e a de 1948, promulgada pelas Nações Unidas e conhecida como a "Declaração universal dos direitos do homem"), fica evidente que estamos realmente diante de uma proposição de ideais, muito mais do que de uma realidade concreta. Mas, seja como for, é preciso lutar por estes ideais, diria Voltaire, ou então caímos na barbárie absoluta. Em outras palavras, os direitos humanos são uma conquista, um refinamento da civilização ou, simplesmente, o resultado de uma luta incessante contra a tirania, a opressão e a exploração (também não tão naturais quanto se pensa).

É verdade que muitos vêem com cinismo a ideia dos direitos do homem, ou seja, que muitos a enxergam como mais uma das "ficções humanas", mas ver o outro como um igual faz parte de um aprendizado social tanto quanto a tirania e o desrespeito à vida são frutos de uma educação que se mostra indiferente às dores e aos sofrimentos dos outros seres (sejam eles humanos ou animais). Sim, o homem é uma construção, e se hoje já é possível até falar em direitos dos animais é porque é necessário continuar refinando nossa razão e sensibilidade. Afinal, rir e zombar do homem é fácil; o difícil é ter potência para construir um homem que seja, de fato, mais justo, mais nobre e mais verdadeiramente "humano".