sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

CRÔNICAS DE LIMA BARRETO


O NOSSO ESPORTE

Quem abre qualquer um dos nossos jornais, principalmente nestes dias de centenário festejados faustosamente em meio da maior miséria, há de concluir que este nosso Rio de Janeiro não é o paraíso do jogo do bicho, a retorta monstruosa da politicagem, a terra dos despautérios municipais e de poetas.
Concluirá que é um imenso campo de football. Senão, vejam; os quotidianos ocupam uma ou duas colunas, em semana, com política, um cantinho com coisas de letras, algum pouco mais com as patacoadas do nosso teatro, quase nada com artes plásticas, tudo o mais de suas edições diárias, isto é, a quase totalidade da folha, enche-se com assassinatos, anúncios e football.
De resto, as gazetas têm razão. Vão ao encontro do gosto do público, seguem-no e, por sua vez, excitam-no. Toda a gente, hoje, nesta boa terra carioca, se não fica com os pés ferrados, ao menos com a cabeça cheia de chumbo, joga o tal sport ou esporte bretão, como eles lá dizem. Não há rico nem pobre, nem velho nem moço, nem branco nem preto, nem moleque nem almofadinha que não pertença virtualmente pelo menos, a um club destinado a aperfeiçoar os homens na arte de servir-se dos pés.
Até bem pouco, essa habilidade era apanágio de outra espécie animal; hoje, porém, os humanos disputam entre si o primado nela. Deixo a explicação desse fenômeno à inteligência e sagacidade dos sociólogos de profissão. O que verifico é que toda a nossa população anda apaixonada pela eurritmia dos pontapés e os poderes públicos protegem generosamente as associações que a cultivam.
Abram o Diário Oficial, lá verão, no orçamento e fora dele, as autorizações inúmeras ao governo para auxiliar com subvenções de cem, duzentos e mais contos, tais e quais ligas de "desportos", como eles, os sportmen, dizem, na sua comichão de vernaculismo.
As mais das vezes, essas subvenções ficam no caminho; mas, nem por isso, o congresso deixa de auxiliar o desenvolvimento físico dos nacionais do país.
Diabo! Uma alimentação sadia, uma habitação higiênica, um bom clima agem tão eficazmente sobre o nosso organismo como umas marradas ou uns pontapés dominicais, debaixo de um Sol ardente - não acham? E o dinheiro, dado para isto é mais empregado naquilo - penso eu.
A proteção dispensada ao football não se limita à que lhe dá o congresso. O Conselho Municipal vai além, porque o conselho, como toda a gente sabe, é composto do que há de mais fidalgo de sangue na nossa sociedade; e é próprio de fidalgos, tanto da Inglaterra como de Madagascar, amar toda a espécie de esporte, desde a escalada ao topo do "pau de sebo", em cuja ponta há uma grande pelega, até os raids de aeroplanos.
Sendo assim, o nosso Conselho Municipal derrama-se, esparrama-se, derrete-se em favores aos moços de mais de quarenta anos que se dão ao sacrifício de dar pontapés numa bola, para desenvolvimento dos respectivos mollets e gáudio das damas gentis que, assistindo-lhes as performances aprendem ao mesmo tempo o calão dos bairros escusos, com cujos termos os animam nas pugnas. É verdade que essas singulares vestais dos nossos modernos coliseus, às vezes, engalfinham-se no correr da luta. É que elas têm partido: uma é pelo leão do Atlas e a outra é pelo retiário.
Os nossos edis, tendo em conta esse aspecto de beleza do nosso football, isentaram-lhe de impostos, enquanto sobrecarregam os outros divertimentos de ônus asfixiantes; entretanto, uma função de football rende, às mais das vezes, uma fortuna, sem despesa alguma, enquanto as diversões outras...
A edilidade, porém, tem razão. Os clubes de football são de uma pobreza franciscana, tanto assim que há alguns que compram vitórias a peso de ouro, peitando jogadores dos contrários a contos de réis e mais...
Bem haja o Conselho Municipal que protege o desenvolvimento físico das pernas de alguns marmanjos! Ele se esquece de estimular os poetas, os músicos, os artistas naturais ou filhos adotivos da cidade que representa; mas, em compensação, dá "arras" de sua admiração pelos exímios "pontapedistas" de toda a parte do mundo. É mesmo essa a função de uma municipalidade.

A.B.C., Rio, 26-8-1922